Amazônia da subordinação ativa

Das reclamações da fiel esposa do Coronel pela demora em receber as roupas que mandou lavar em Paris, à cena chocante e grotesca do próprio, sentado a mesa de um luxuoso bordel, acompanhado de uma prostituta “francesa”, queimando uma nota de 500 mil reis para acender seu charuto (certamente a cédula de maior valor na época) constata-se que o dinheiro farto concentrado nas mãos dos coronéis, obtido a ferro e fogo, da exploração brutal da mão de obra do seringueiro escravizado nos barracões, servia para todo tipo de extravagâncias.

Imagine alguém hoje, em vez de usar fósforos ou isqueiro, queimasse uma nota de R$ 100 para acender um charuto! Desperdiçar fortunas em consumo ridículo parece coisa do passado.  É verdade que as roupas finas de nossa elite já são lavadas aqui mesmo, porém, se analisarmos nossa história vamos encontrar algumas semelhanças entre o passado e o presente, entre os senhores de engenho, os barões do café, a elite cacaueira da Bahia e as carvoarias das guzeiras modernas. Ponto comum em quinhentos e sete anos de história, as condições de trabalho dos bóias-frias e suas terríveis conseqüências.

Na verdade a classe dominante brasileira, ao longo de nossa história, acumulou grandes fortunas com base no trabalho escravo dos negros trazidos da África desde o século XXVI, consolidando, dessa forma, um comportamento político-econômico-cultural que Domingos Leonelli, em seu livro “Uma Sustentável Revolução na Floresta”, classifica de vergonhoso fenômeno da subordinação ativa, que fez dessa elite, protagonista de um modelo de desenvolvimento ancorado solidamente na desigualdade social, na dependência externa e no crime ecológico.

Nos tempos retratados pela mini-série, final do século XIX, o Brasil exportava pélas de  borracha de baixíssimo valor agregado. Os barracões tinham de tudo que a época podia oferecer. Os seringais eram abastecidos pelas casas aviadoras, que por sua vez dependiam dos exportadores, testas de ferro do capital externo, que financiavam tudo e mantinham estrito controle de todos os elos da cadeia produtiva. Ditavam o preço da borracha e também obrigavam os seringalistas a comprarem produtos importados dos países donos dos capitais: Inglaterra e Estados Unidos. Em função desse vai-e-vem desigual, matéria-prima rio abaixo, produtos industrializados rio acima, é que  meu amigo Elson Martins conheceu Ludwig Van Beethoven no Seringal Novo Olinda, nas cabeceiras do Rio Yaco. Descobri isso, dividindo com ele um beliche numa república estudantil na Rua Rio de Janeiro, na cidade de Belo Horizonte dos anos sessenta.

Éramos doze moradores, estudantes das mais diversas áreas, onze amantes da música popular e um que só emprestava seus ouvidos aos acordes da música instrumental clássica européia, justamente o acreano Elson Martins, o dono da vitrola. De tanto ouvir seus discos terminei também educando meus ouvidos aos sons de violinos e violoncelos, entretanto, só vim saber mesmo onde ele educou os seus, no finalzinho do século vinte. Atravessamos momentos difíceis, ditaduras, clandestinidade, fugas, prisões e exílio, às vezes escapando por um triz, mas sobrevivendo; às vezes na mesma cidade, outras vezes nos perdendo de vista, porém sempre um sabendo do outro e a amizade vicejando no tempo.

Seu pai, Francisco Martins, cearense que subiu o rio em busca de fortuna, terminou se dando bem: de agricultor que abastecia o seringal Nova Olinda virou dono. Isso aconteceu, segundo versão do Elson, em função do declínio da borracha, quando a Malásia inundou o mercado com borracha produzida pelos seringais tecnicamente cultivados, pegando os coronéis de barranco amazônicos mergulhados no atraso, de tal forma que sem saber como encarar os novos tempos, bateram em retirada, deixando os seringais em crise nas mãos de seus capatazes. Seu Francisco assumiu o negócio em plena decadência, ainda assim os métodos da dominação e subordinação não abrandaram. Era obrigado a receber, sem que tivesse encomendado, vitrolas RCA Victor movida à corda, acompanhadas de pilhas e pilhas de disco de Beethoven, Mozart, Bach, Vivaldi, Chopin, enfim, dos grandes compositores da música instrumental clássica. Seu Francisco bem que não se importaria de passar adiante aquele estranho produto da modernidade industrial, porém, a quem interessaria naqueles confins? Os seringueiros não queriam ouvir falar do tal aparelho, muito menos das músicas que saiam dele. Os discos encalhados ficaram esquecidos num canto escuro do barracão até serem descobertos pelo quase adolescente Elson Martins, que passou a ouvi-los com paixão por toda a vida.  Parece cômico se não fosse trágico, lembrar dessa forma, um episódio claro de dominação cultural, que também se reproduz na política e na economia, nos condenando a viver angustiados em uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade social.

Ainda que a mini-série passe ao largo de tantas outras tragédias, como é o caso do genocídio dos povos indígenas, ainda assim, a rapinagem e a brutalidade do modelo de exploração dos recursos naturais da Amazônia saltam aos olhos dos telespectadores. Na seqüência, Chico Mendes entrará em cena, sua luta e seu fim trágico certamente provocarão grandes emoções, no entanto, as tragédias se repetem com vergonhosa freqüência, os tiros que abateram  Dorothy Stang ainda ecoam em nossos ouvidos, a tragédia de hoje talvez aconteça antes de concluir esse parágrafo, a cada dia novos mártires tombam em defesa da floresta, que por sua vez continua sendo derrubada e queimada, indo fazer companhia a seus novos mártires.

Compartilhe!